No início, susto! De repente me tiraram o movimento, a liberdade, o contato, o ver, ouvir, tocar o outro. E me vi na solidão, sentindo saudade, aquele tipo de fome de afeto. Clarice Lispector disse que a Saudade só passa quando se come a presença do outro. O que antes era vínculo e contato, passou a ser medo do contágio, da solidão, da morte.
Cuidado! Então, me encolho num recolhimento para sobreviver e preservar os amados, tendo que encarar a falta de contato, ausência da presença, isolamento, medo. Sensação de estar sendo engolido? Pelo silêncio?
O Desânimo e a depressão indicam um luto pela vida que tinha, tristeza, vazio a ser preenchido. Vontade de desistir? Ou de existir? Reação.
Com o isolamento passamos a ter um tempo disponível que também é novidade. E o que fazer com todo esse tempo que ganhei? Nós, tão acostumados a não ter tempo para nada, vivendo a 200 km por hora... Alguns aproveitam o tempo para se reinventar, estudando, lendo, arrumando a casa dentro e fora.
Ao ter tempo, me pego prestando a atenção nas raízes de uma árvore, mergulhando na terra para garantir seiva e vida. Tão invisíveis e imprescindíveis quanto o inconsciente.
Se não é mais possível viajar para fora, quem sabe viajar para dentro? Introspecção. Como isso é novo, perigoso, aterrador.
Acolher memórias, fatos imagens e vivências que em mim moram. Como diria Fernando Pessoa, acessar o Eu Profundo e os outros Eus. Todos os Eus que sou vivem em mim, e para empreender essa viagem para dentro, mesmo com medo, ter a coragem necessária ara entrar em contato com as vivências tão profundas e essenciais.
Visitar os tempos que moram em mim, os registros de quem fui e sou: bebê faminto, carente de comida e amor, cuidado para sobreviver; criança aterrorizada pelo medo da exclusão, adulta se sentindo à deriva, desamparada nessa condição humana de falta, do não saber... Tudo isso retorna como se um portão tivesse sido aberto em mim, e essas vivências ali, disponíveis, gritando por acolhimento, ressignificação.
Viver na carne a impotência, essa sensação de que nada do que eu fizer ou deixar de fazer irá mudar a situação, que não depende de mim causa desassossego. Mas, será que não podemos fazer nada mesmo, ou será que podemos aproveitar essa viagem para nos fortalecer e sentir melhor dentro de nossa própria pele?
Descobertas que amedrontam, mas que também desafiam. Convite para revisitar memórias, recontar histórias com novas versões e perspectivas, sob um novo ponto de vida, trocando de lugar com os personagens. Brincar e fantasiar. Exercício difícil, mas vital. Abrir mão de julgamentos, da repetição, da mesmice, da compulsão: ao mesmo tempo aterrorizador, libertador.
Toda essa situação de Pandemia e isolamento social, por mais paradoxal que pareça, se constitui uma crise. Para os orientais, uma crise não é apenas um problema, uma ruptura, mas também contém as raízes da mudança, da transformação. Como o grão de semente que, para germinar e virar árvore, tem que romper a casca.
Nos atendimentos que tenho realizado e vivenciado, para além dos relatos de angústia, crises de pânico e depressão, tenho observado também movimentos interessantes relatados por pacientes.
1- A noção do tempo mudou. Se antes nos agarrávamos à ilusão de um tempo eterno que preencheríamos com planejamentos a curso, médio e longo prazo a nosso bel prazer, agora nos deparamos com uma limitação. Só temos o tempo presente e aprender a viver um dia de cada vez se impõe, uma vez que não sabemos se haverá um futuro, próximo ou distante;
2- Tempo para olhar para dentro e rever as prioridades da própria vida e planos;
3- Possibilidade de prestar mais atenção nas dinâmicas familiares. Com a proximidade maior com a família, vários conflitos que estavam adormecidos emergem buscando resolução, fala, trocas, escutas e transformação;
4- Sentimento de gratidão e reconhecimento pelo que se é ou já conquistou, a partir da observação e comparação com tantas pessoas que estão à deriva, à mercê. A compreensão de que na verdade não é preciso tanta coisa, diminuindo inclusive a necessidade de consumir;
5- Vontade de ser generoso, de doar, colaborar, o que reacende o sentimento de fraternidade e humanidade;
6- Ter que se reinventar, atender a demandas de várias ordens, substituir o delicioso e conflitante contato pessoal por máquinas, aparelhos, equipamentos e o que mais for necessário para dar continuidade à possibilidade de vínculo, mesmo diante da ameaça de total descontinuidade. Novos espaços geográficos, psíquicos, novas formas de vínculos para se fazer presente mesmo à distância, escuta. Novas rotinas, novas atividades. Aprender, testar, adaptar, reaprender num ciclo exaustivo, interminável, que me consome à exaustão.
Me pego pensando: Logo eu, tão antiga, pessoal, romântica até, tendo que me render a toda essa tecnologia, distância...
Freud escreveu um texto abordando a transitoriedade, descreve uma conversa com o poeta Rilke, que assombrado diante da finitude se mostrou desesperançoso, e nesse ponto foi Freud quem pontuou que talvez exatamente pelo fato da transitoriedade da vida, em função dessa noção de fim, cada segundo passa a ter uma nuance especial, um convite à fruição do momento único. Concluo esse texto com um poema da Carlos Pena Filho, que nos convida a amar o transitório.
A Solidão e Sua Porta
Carlos Pena Filho
Quando mais nada resistir que valha
a pena de viver e a dor de amar
E quando nada mais interessar
(nem o torpor do sono que se espalha)
Quando pelo desuso da navalha
A barba livremente caminhar
e até Deus em silêncio se afastar
deixando-te sozinho na batalha
Arquitetar na sombra a despedida
Deste mundo que te foi contraditório
Lembra-te que afinal te resta a vida
Com tudo que é insolvente e provisório
e de que ainda tens uma saída
Entrar no acaso e amar o transitório.